Os paradigmas tecnocrático, humanizado e holístico do parto - Parte I - As 12 crenças do modelo tecnocrático

Contribuição de Robbie Davis-Floyd**
14 de Dezembro de 2004

A medicina cresce e viceja no solo da cultura e das crenças mais do que naquele alardeado do rigor científico: eis o grande achado da antropologia debruçada sobre a medicina. O sistema de saúde, diz Davis-Floyd encarna os preconceitos e as crenças da sociedade que o criou. Os valores fundamentais da sociedade ocidental são fortemente orientados pela ciência, pela tecnologia, pelo lucro econômico e pelas instituições patriarcais. Na medicina assim como na sociedade, a tecnologia reina soberana. Já foi demonstrado nos últimos vinte anos pelo menos que as rotinas dos procedimentos obstétricos têm pouco ou nenhum embasamento científico. Entretanto elas continuam sendo utilizadas, porque seu sentido não é médico, e sim cultural.

Segundo Davis-Floyd co-existem hoje três modelos de atendimento obstétrico, cada um deles se caracteriza por 12 diferentes crenças. Podemos encontra-los ao estado puro ou mesclado, dependendo do país, do profissional e do contexto sócio-cultural.

As 12 crenças do modelo tecnocrático do parto

(1) Separação mente-corpo e (2) o corpo como máquina

O paradigma tecnocrático em medicina se baseia no conceito de separação. Segundo este princípio, a matéria pode ser mais bem entendida se extraída de seu contexto, separada dos objetos e das relações que a rodeiam. Assim a medicina divide os sujeitos em partes e separa a experiência do nascimento do fluxo maior da vida. Contudo, o corpo humano representa um grande paradoxo conceitual: ele é simultaneamente criação da natureza e produto da cultura. Como é possível então separar-nos da natureza quando somos parte dela?

No afã de chegar mais perto de Deus, da pureza e dontelecto que representa a divindade sobre a Terra, a Idade Moderna com seus filósofos lançou as bases filosóficas da separação mente-corpo e situou a essência humana em sua parte mais elevada, acreditando que a alma pudesse permanecer impassível e inalterada perante os influxos e as experiências do corpo.

Aparentemente igualitária esta concepção, desenvolvida por uma sociedade patriarcal e andro-cêntrica, fez do homem o protótipo do correto funcionamento mente-corpo. O corpo feminino, visto como desvio daquele masculino, foi olhado com suspeitas e entendido como inerentemente defeituoso, imprevisível, necessitando da manipulação masculina para poder ser posto em ordem. Segue que o parto, momento extremo e agudo de uma máquina caótica e não confiável, requer a intervenção hábil e rápida do profissional. Na metáfora dominante do parto o hospital se tornou uma fábrica, o corpo da mãe uma máquina e o bebê o resultado de um processo de produção industrial*(DAVISFLOYD: 2001, 6).

(3) A paciente como objecto e (4) a alienação do profissional em relação à paciente

Mecanizando o corpo humano e definindo-o como máquina objeto dos cuidados médicos, o profissional está liberado do sentimento de responsabilidade perante o paciente enquanto sujeito mental e espiritual. O uso de siglas para indicar os pacientes nos hospitais reflete claramente esta postura. Esse tipo de alienação é aprendido e treinado durante os longos anos de academia, quando os estudantes são ensinados a evitar o envolvimento emocional com seus pacientes.

Mesmo sabendo que o toque e o cuidado afetuoso são poderosos instrumentos durante um trabalho de parto, é raro ver obstetras abraçarem e darem suporte emocional às parturientes.

(5) Diagnóstico e tratamento de fora para dentro

Quando as máquinas quebram, elas não se consertam sozinhas, devem ser reparadas por alguém, de fora para dentro. Assim, na tecno-medicina, toda doença ou disfunção é consertada de fora. O pré-natal segue a mesma filosofia, fazendo largo uso de medições e máquinas externas à percepção e sensibilidade da mulher.

Durante o parto a administração rotineira do IV (intravenosa) é um bom exemplo do uso maciço da abordagem outside-in. Existem evidências mais do que difusas de que é importante que a mulher se movimente e se alimente por si só. Entretanto, a despeito das pesquisas científicas, o IV permanece arraigado por ser uma poderosa atitude simbólica. Segundo Davis-Floyd o uso do soro representa o cordão umbilical que liga a mulher ao hospital, colocando-a numa relação de dependência, passividade e necessidade. Por extensão, o uso do soro intravenoso é expressão da vida na tecnocracia, onde somos todos dependentes e reverentes em relação à tecnologia que nós mesmos criamos.

(6) Organização hierárquica e (7) padronização dos cuidados

Assim como a estrutura industrial que a precedeu, a tecnocracia está organizada hierarquicamente. Com tecnocracia se entende o uso da ideologia do progresso tecnológico como fonte para o poder político. Se expressa assim, não só o tecnológico como também o aspecto hierárquico, burocrático e autocrático do modelo cultural dominante de realidade. (DAVIS-FLOYD: 2001, 7) Mesmo quando a corporação médica tenta dar um salto em termos de organização, permanece rigidamente fiel à sua estrutura hierárquica e a seus papeis internos fundamentados em status e crenças. A corporação médica é um microcosmo que reflete a sociedade maior na qual se encontra.

A padronização do atendimento é dramaticamente evidente nos mais modernos hospitais, onde a grande maioria dos procedimentos rotineiros são desprovidos de validade científica. Mesmo quando alguns deles são deixados de lado, os que reforçam a dependência da mulher em relação à ciência e à instituição são intensificados.

(8) A autoridade e a responsabilidade são do profissional, não da paciente
O modelo tecnocrático investe de autoridade os médicos, suas instituições e funcionários. O uso do avental branco é um claro sinal de autoridade. A posição mais confortável para o paciente é abdicar de sua responsabilidade e entregar-se nas mãos do médico.
No parto, uma das maiores demonstrações gráficas do poder da ‘escolha do médico’ é a posição de litotomia tão popular entre médicos não porque faz sentido do ponto de vista fisiológico, mas porque lhes permite acompanhar os partos de pé, com um claro campo de ação***. (DAVIS-FLOYD: 2001, 8)

Sabe-se muito bem que tal posição complica o parto, mas as muitas boas razões fisiológicas para que as mulheres fiquem em posição vertical (entre elas, a melhora do afluxo de oxigênio para o bebê, maior efetividade no período expulsivo e aumento da dilatação da pélvis) são muito menos importantes para os médicos do que seu conforto, conveniência e status. (DAVIS-FLOYD: 2001, 9)

Depositar toda autoridade e responsabilidade no médico é uma faca de dois gumes: a proliferação de denúncias contra obstetras nas últimas duas décadas mostra como as usuárias estão usando esse dogma da tecnocracia contra seus próprios proponentes.

(9) Valorização excessiva da ciência e da tecnologia

Geralmente se acredita que ser médico é ser cientista. Entretanto poucos são os alunos de medicina que recebem um treinamento em metodologia de pesquisa e análise. Por incrível que pareça, enquanto a ciência é hiper-valorizada, os mais novos achados das pesquisas são freqüentemente ignorados ou desconhecidos.

Toda a tecnologia que é aceita e incorporada é aquela que reforça a ética da tecnocracia segundo a qual a evolução passa pela tecnologia e o progresso significa o desenvolvimento de máquinas sempre mais sofisticadas. O papel do médico se concentra na interpretação dos dados oferecidos pelas máquinas. A difusão rápida de instrumentos tecnológicos diz respeito ao valor simbólico que eles detêm, muito mais do que seu valor de uso e de cura: funcionam como um upgrading dos cuidados médicos mantendo em vida a crença nesta noção de progresso.

(10) Intervenções agressivas com ênfase em resultados em curto prazo a morte como fracasso

Quanto mais controlamos a natureza, incluindo nosso corpo, mais tememos aqueles aspectos que não podemos controlar. A ênfase posta no projeto de ‘melhorar’ a natureza através da tecnologia, tem como finalidade última nos libertar dos limites da própria natureza. Quanto mais nos sentirmos capazes de dominar a natureza e o nosso corpo, mais tememos o que não conseguimos controlar. E no final, a morte é a demonstração do nosso fracasso. O que está por trás e por baixo das atitudes e da rotina obstétrica em vigor é em última instância o medo da morte. Todos os procedimentos vivem a tensão do querer criar a ilusão da segurança absoluta.

A hegemonia tecno-médica: (11) um sistema guiado pelo lucro; e (12) a intolerância para com outras modalidades

Uma vez que uma ideologia se torna hegemônica, todas as outras são consideradas alternativas. A
condição hegemônica é mantida e reforçada pelo rendimento que gera: as companhias farmacêuticas e médicas representam de longe a mais rentável das indústrias nos Estados Unidos. Como conseqüência todas as modalidades alternativas constituem uma ameaça de perda de status e de poder econômico, razão pela qual devem ser cerceadas.

(continua)

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