E se houver uma terceira via para as famílias, para os pais, para as mães, para as crianças?
E seu, aqui, agora, na nossa cozinha, entre o estufado de carne, a medicina e as mitologias, a filosofia e a Internet, fizer parte desse novo caminho que se está a traçar?
Facilmente concordo com as acepções de que a igualdade de género, a igualdade entre homens e mulheres constitui um direito fundamental.
Trata-se de
"assegurar a igualdade de oportunidades e tratamento entre os dois sexos, por um lado, e em lutar contra toda a discriminação fundada no sexo, por outro." (UE)
Também concordo sem hesitar com as acepções que vão beber à teoria do apego e à etnopediatria e nos dizem que
"our taxonomic order, the primates, is distinguished from other mammals by it's intense sociality at all levels and specially by the necessary long-term affiliative relationship between parents and off-spring. How primates nurse carry, and protect our infants, and the fact that we extend the parenting period longer than any other animal, is striking; intense and expensive parenting is, in fact, one of the most distinguishing features of us primates, and a major mark of the human species in particular". (Meredith F. Samll (1998) Our babies ourselves How biology and culture shape the way we parent, Nova Iorque: Anchor Books)
O que me continua a deixar, confusa, e sem rumo, são as acepções fazem um mix de tudo aquilo com que facilmente concordo e ainda lhe acrescentam uma nova variável, a escola. Seja para defender ou atacar esta última.
"é bem verdade que a responsabilidade da educação já não pertence aos pais (...) porque as voltas da organização social, que libertaram a mulher, prenderam as crianças em infantários onde são depositadas ainda o sol espreita no horizonte. A expressão encarregado de educação não faz sentido porque o tal encarregado hoje é, verdadeiramente, o encarregado das despesas do infantário". (Armando Moreno (2011) A Medicina e as Mitologias Mitos Antigos e Modernos, Lisboa: Medilivro, pp 76)
O bem estar das crianças - do ser humano, pois uma criança é um ser humano - passa pela permanência prolongada junto de um cuidador principal.
Milhões de anos de presença de mamíferos na terra, dizem-nos que, em condições ideais, esse cuidador principal é a progenitora.
A própria biologia nos dá as evidências necessárias - gravidez, parto, amamentação, recuperação pós-parto - e nos compele a ficar mais próximas das nossas crias do que o pai (verdadeiro para todos os mamíferos).
O sucesso das medidas de igualdade de género, mede-se pela capacidade que uma sociedade tem de dar, a homens e mulheres, as mesmas oportunidades. Mede-se também, pela capacidade que as mulheres tem agarrar essas "oportunidades" ocupando os mesmos cargos e assumindo as mesmas responsabilidades que os homens.
De igual forma, nesta equação igualitária, assume-se que os homens tem um papel activo no universo familiar e doméstico que, outrora, em tempos desiguais, eram apanágio exclusivo do sexo feminino.
Mas, como é que estas duas posições se conjugam?
Por um lado, libertar as mulheres da esfera doméstica para a esfera profissional, manter os homens na esfera profissional - implicando-os um pouco na vida doméstica.Por outro lado, manter o pai e/ou mãe como cuidadores principais e a família como o elemento de socialização primária, assegurando que as crianças e adolescentes aprendem em contexto?
Há já algum tempo que penso que estamos nesta encruzilhada pelo facto de pretendermos fazer a síntese hegeliana com uma visão demasiado restritiva da(s) tese(s) que nos antecedem, quer em termos temporais, quer em termos de diversidade.
Ou seja, consideramos que:
- a dança de homens e mulheres entre os papeis expressivo e instrumental (na gíria parsoniana)i.e., o facto de que ambos tem capacidade e disponibilidade de produção para alimentar o mercado e a sociedade de consumo em que vivemos (na minha gíria que é a da abolição do trabalho);
e,
- o crescente número de respostas institucionais para a infância que excluem as crianças da esfera social até que elas mesmas tenham capacidade e disponibilidade para contribuir para o mercado,
são a síntese perfeita pela qual devemos lutar.
Vivemos num sociedade hipermoderna e hiperconsumista (Lipotevsky), onde predominam as ciências fisico-técnológicas (Beck), se instalou o debate da insegurança e desconfiança (Beck, 1992; Vailt, 1999), perigo e risco (Giddens, 1996), onde os laços comunitários e a família alargada se diluíram (Kitzinger, 1979, Kellerhals et. al., 1989; Segalen, 1996; Saraceno, 1992) dando lugar ao hiperisolamento (Lietaert, 2010) e na qual a criança foi privatizada passando a sua existência a depender apenas da vontade do casal (Kellerhals et al., 1989).
Os recursos e respostas que construímos para as famílias encontram-se maioritariamente no mercado (Hamilton, 2009) e no Estado (Lasch, 1977; Donzellt, 1977; Berger e Berger, 1984) e estas instâncias, todos os dias, nos demonstram a sua ineficácia, especialmente em contextos mais vulneráveis (Bayle, 2006).
E se este modelo de organização social, pelo qual lutamos até aqui, continuamos a lutar e, inclusivamente, continuamos a impor a outros povos como sendo o único possível, for apenas a antítese do isolamento em que vivem, e viveram, as famílias nucleares nos últimos séculos (com o consequente aprisionamento da mulher à esfera doméstica) e a verdadeira antítese estiver na integração deste modo de vida (tipicamente ocidental) e outros, mais distantes no tempo e no espaço?
Existem outras formas de organização social que assentavam (e assentam) em formas de vida comunitárias e cuja organização social, per si, ultrapassa o dilema do isolamento e da não participação dos indivíduos na vida colectiva, sejam eles homens, mulheres ou crianças.
Não defendo, per si, uma organização social e modo de vida comunitário, tribal ou de clã - como as que sabemos terem existido nas sociedades matriciais europeias do neolítico ou, como as que conhecemos das muitas tribos norte e sul-americanas, dos berberes australianos ou dos povos ciganos - que replique tanto os os seus laços sociais como as suas dificuldades.
O que eu defendo, é uma síntese que integre os benefícios de ambos os modos de vida - comunidade e tecnologia - potenciador de um espaço para existir, fora do meio de produção, consumo, institucionalização - tanto para adultos como para crianças.
Não sei como isto se faz e aceito que me considerem utópica. Para os meus sonhos, a utopia basta.
"A vida só pode ser compreendida
olhando-se para trás;
mas só pode ser vivida
olhando-se para a frente."
(Soren Kierkegaard)
Post scriptum:
Sim, gostava de poder escrever mais e melhor sobre este e outros assuntos mas na minha condição de mãe a tempo inteiro (ou quase), sem rede social de suporte e sem o filho institucionalizado nem que seja algumas horas por semana, não disponho de tempo (nem cérebro) para mais e melhores pesquisas, mais e melhores reflexões.
Lamento, ter, na cabeça, mais livros e teorias do que consigo digerir e tornar inteligíveis.
Lamento, ter, na vida, tempo a menos para todas as letras e experiências que gostaria de integrar.
Lamento ter, para a temática (mas não só) mais paixão do que aquele que a ciência consegue integrar.
Sim, esta realidade ainda me magoa o suficiente para não conseguir ou aceitar ou encontrar um modo de vida alternativo que minore o seu impacto. Continuarei a deixar doer e a escrever.
Agradeço, esta eterna vontade de problematizar e encontrar respostas.
Agradeço à família e às experiências pessoais e profissionais que me colocaram neste caminho.
Obrigada por me lerem e comentarem.
Outras reflexões sobre este tema:
Referências Bibliográficas:
BADINTER, Elisabeth (2010) Le conflit la femme et la mere, Paris: Éditions Flammarion
BECK, (1995) Ecological politics in na age of risk, Cambridge. Polity Press
BECK, Ulrich, (1992), “ From industrial society to risk society: questions of survival, social structure and acologiacal enlightment”, Theory, Culture and Society, vol.9, pp 97- 123
BECK, ulrich, (1992), Risck society: towards a new modernity, London, Sage Publications
GIDDENS, Anthony, (1996) As consequências da modernidade, Oeiras, Celta editora
GITTENS, Diana (1993) The Family in question, changing households and familiar ideologies, Londres: Macmillan
HAKIM,Catherine (2000) Work-Lifestyle Choices in the 21th century, Oxford: Oxford University press.
KITZINGER, Sheila (1981) Mães, um estudo antropológico da matrnidade, Lisboa: Editorial presença.
LIEDLOFF, Jean (2004) The continnum concept, In search of happiness lost, Londres: Penguin Books
LIPOVETSKY, Gilles, (1983), A Era do Vazio, Antropos, Relógio de Água, Lisboa
LUHMANN, Niklas, (1993), Risk: a sociological theory, New York, Walter de Gruyter