A mulher, a mãe, a cidadã, a trabalhadora

Hoje fui trabalhar. Eu sei, é um privilégio poder "ir trabalhar" só de tempos a tempos. Um privilégio que tem custos associados mas aos quais nós escolhemos submeter-nos. Posso escrever sobre isso um dia...

Como ia dizendo, hoje fui trabalhar, estive numa reunião que durou duas horas, o S. foi comigo mas ficou com uma senhora de confiança, no r/c do edifício onde se deu a reunião e foi brincando com as crianças que apareciam. Tenho a sorte de ter sempre reuniões em locais onde há espaços acolhedores para as crianças e também brinquedos e outros meninos e meninas. Mas, também não é sobre isso que quero escrever.

Depois da reunião, séria mas descontraída, fui visitar as colegas, nas suas salas, com o seus computadores e papeis, e os seus semblantes mais ou menos (des)contratídos. A reunião foi com a direcção lá do sítio, um homem. Nas salas dos computadores e dos papeis só havia mulheres.

A minha relação com o mundo do trabalho passou a ser de outsider. Onde antigamente via colegas, trabalhadoras, profissionais, bem ou mal dispostas, mais ou menos competentes, com mais ou menos diplomas, umas vezes simpáticas, outras nem por isso... agora vejo mulheres, mães, mais ou menos felizes, mais ou menos amadas, mais ou menos conformadas com o facto de serem mulheres, mães, filhas e amigas apenas em part-time. São mulheres mais ou menos convencidas de que todos os casamentos tem os seus problemas e os seus não são excepção, mais ou menos dilaceradas por os seus filhos serem mais distantes e difíceis de compreender do que algumas vez pensaram, mais ou menos saudosas do tempo em que estavam grávidas e toda a gente as tratava com carinho, mais ou menos tristes porque a primeira infância dos seus filhos passou demasiado depressa, mais ou menos sozinhas numa vida onde o trabalho, a tv e os computadores ocupam todo o tempo e espaço que elas desejam dedicar ao amor.

Agora, sempre que observo mulheres a trabalhar, vejo tudo isto estampado nos seus rostos, denunciado nos seus movimentos, somatizado nos seus corpos. Mulheres impedidas de expressar a sua feminilidade, levadas a acreditar que a energia masculina que as anima e as move no competitivo mundo do trabalho e das concretizações, é mais importante do que a sua inata capacidade para amar, nutrir e cuidar de si e dos seus. Mulheres que se anulam dia após dia, todos os dias, uma vida inteira. Tudo isto eu vejo sem conseguir verbalizar, sem conseguir sequer formular no meu cérebro dividido entre dois mundos.

Até que hoje, uma colega perguntou?

- "sabes que a N. está no hospital, nos cuidados intensivos?"
 - "então porquê? Alguma doença grave?"
- "um ataque cardiaco"

A N. podia ser qualquer uma de nós, mulher, na casa dos 40, dois filhos - 15 e 9 anos - trabalhadora a tempo inteiro em cargo exigente, aluna em cursos de especialização/actualização, marido emigrado, motivada, reflexiva.... Quantas mais estão quase lá? Quantos corações terão que parar até que o mundo se aperceba que vivemos depressa demais? Com exigências demais? Com amor a menos?

4 comments:

  1. Conheço muita gente que se lesse isto diria "pois sim, mas nem toda a gente pode viver assim, a trabalhar só de vez em quando". Mas eu digo que sim, que é possivel, se eliminarmos da nossa vida tudo que é superfluo, podemos viver com bastante menos do que estamos habituados.
    E em relação a achar que a infância dos filhos passa demasiado rápido... Se eu que estou com os meus a tempo inteiro e acho que passou tudo demasiado rápido, imagino as pessoas que só vêem os filhos 2 ou 3 horas por dia.
    Bjs

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  2. Subscrevo todo o consciente e belíssimo texto. Muito obrigada por ele.
    Bjnhos****

    Margot

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  3. Magnífico...
    TENS QUE PUBLICAR UMA COLECTÂNEA DOS TEUS TEXTOS!

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  4. obrigada meninas, se vocês soubessem as coisas que me passam pela cabeça no dia-a-dia. pena que não tenho por hábito ir gravando os meus pensamentos num daqueles gravadores de voz como os que as personagens principais tem nos filmes. Só assim conseguiria depois escrever. Ou, ainda bem que não o faço pois seria muito mais interessante e útil gravar pensamentos de amor e escrever textos de esperança. No fundo, o que eu queria era menos inconformismo, menos sentido crítico... mais viver e menos analisar e questionar tudo o que me rodeia. Enfim, mais aceitação e gratidão. Para lá caminho... :) obrigada pela vossa paciência :)

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