Ontem estive aqui a procurar colocar conteúdos válidos nos tópicos "morte digna" e "reconexão com a espiritualidade dos lugares" e dei comigo a sentir um movimento para um espaço de solidão que me deixou vulnerável.
É fácil partilhar o fascínio pela simplicidade da vida rural, porque vem em antítese ao que mais nos tem oprimido, já que na cidade a loucura está mais concentrada e porque do cimento não se faz chá.
Não existe vulnerabilidade na partilha desses valores e existe alegria e de uma forma ou de outra, todos nós temos ainda memória recente dos valores da terra, bastando recuar em alguns casos uma ou duas gerações para termos sangue rural, sangue da terra, suor do trabalho árduo pela sobrevivência. Está nos valores que nos foram subtilmente transmitidos. Ainda só passou nasceu a segunda geração depois de mais de 30 anos de um tempo em que até a nossa capital era semi-rural. Muita gente tinha a sua hortinha, muita gente tinha ainda bem vivas as memórias do cheiro da terra molhada, dos fumeiros, das queimadas, da ceifa. Esses sentidos ainda estão acordados no nosso sentimento de força colectiva.
As pessoas estiveram sempre em grande medida entregues a si mesmas, precisando de trabalhar pela sua subsistência, sem contar com uma estrutura externa para resolver os seus problemas. E é relativamente recente esta noção de haver uma espécie de gigantesca mama, de subsídios e apoios externos à nossa diligência de trabalhar duramente todos os dias pelo pão na mesa. E por isso ainda sentimos uma simpatia natural pela ideia da auto-suficiência que era o sonho de qualquer lar rural, desde sempre, até há umas décadas, quando nas nossas aldeias passou a haver o lidle e o Dia e passou a ser mais barato comprar do que produzir.
Compreendemos o engodo e não queremos recuar, queremos cruzar a linha de haver apoios com a linha de sermos capazes de nos sustentarmos sem hipotecarmos a nossa dignidade e sentimento de segurança mínima que advém de controlarmos a nossa própria experiência: Educando os filhos à nossa maneira, criando as nossas estruturas de sobrevivência e alicerçando redes comunitárias centradas em novos valores.
Até aqui estamos sempre na esfera de valores partilhados. Não há vulnerabilidade. Não é preciso falar da nossa experiência pessoal, nem da nossa casa. Sentimos que de qualquer forma ninguém se interessa por isso, e defendemo-nos.
Consideramos que a morte não é assunto e que a espiritualidade é algo que cada um guarda para si.
E no entanto, não tenho a certeza de que isto seja sinal de grande saúde comunitária.
Nas comunidades humanas onde as pessoas vivem realmente em comunidade, tribos independentes e auto-sustentáveis desde tempos imemoriais, a morte é algo importante e celebrado, ritualizado e valorizado, sacralizado. A vida está sempre mais em perigo. A ligação à natureza coloca esses humanos em contacto diário com a morte. Matam o que comem, não compram empacotado. Sentem a morte perto e por isso não podem fazer de conta que não é importante e não existe.
E quanto à espiritualidade. Não se trata de religião. Trata-se de estar ligado ao nosso lado transcendente. E esse é o laço que une pessoas às pessoas. Pessoas à Terra e à Vida. Pessoas aos bichos e às plantas. Aos elementos. Aos minerais.
É através de laços de espiritualidade que respeitam em laços de profunda gratidão os predadores e as presas, e assumem o seu papel na cadeia alimentar com respeito por ambos. Os seus deuses não são mais do que simbólicas formas de gratidão, veneração e assombro, perante o que são os espíritos dos animais. Os espíritos das plantas. O espírito das flores. O espírito da água. Do fogo. E tudo isso torna as suas vidas mágicas. E as suas mortes dignas.
Assim, são duas formas de encarar o que é da esfera íntima e quais são os valores partilhados.
Se eu dizer aqui aquilo de que sou crente, eu fico vulnerável. Podem ofender-me. Ou dizer-me algo muito pior "que não têm nada a ver com isso", que "não têm nada a ver" com o espírito que me anima,me dá vida e a tudo aquilo que vivo todos os dias.
E quando eu morrer, não vão querer ver-me, vou estar horrível. Vítrea. Vazia desse sopro que me fazia brilhar o olhar.
O paradoxo da esfera individual, é que é ela que nos une.
O que torna tão sólidas as relações é o facto de partilharmos intimidades. E intimidades são tanto mais íntimas quanto mais "só dizem respeito" a cada um.
E é quanto mais entramos na intimidade de cada um, que mais podemos viver amorosidade profunda, e isso é espiritualidade.
Acho que a pétala da saúde refere "bem estar espiritual" por causa disso. Porque não chegamos a tocar uns nos outros até que laços de espiritualidade se estabeleçam por partilharmos o lado mais profundo das nossas realidades.
Não tem nada a ver com crenças. A espiritualidade pode ser vivida no silêncio com que caminhamos juntos sob um magnífico céu estrelado de Junho. Pode ser vivida quando sentimos o nosso respirar no momento em que o suor escorre e o sacho recorta a carne da terra de onde a vida irá rebentar forte e cheia de sol. Pode ser quando parimos. Pode ser quando abraçamos um amigo que perdeu um filho.
São os nossos limites.
E isso pode ser partilhado de muitas maneiras.
Apenas é riqueza pura estarmos conscientes disto, e celebrarmos isto, e transmitirmos isto às gerações vindouras através do nosso exemplo. Sem desvalorizar o íntimo espiritual profundo apenas por nos assustar parecermos sempre maluquinhos aos olhos de alguém.
Por Sofia Passos, via http://permaculturaportugal.ning.com/group/sadeebemestarespiritualumadasptalasdaflordapermacu
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