Contribuição de Robbie Davis-Floyd**
14 de Dezembro de 2004
A humanização surge em reação aos excessos da tecnocracia. É uma tentativa dos profissionais de reformar as instituições por dentro. Os humanistas desejam simplesmente humanizar a tecno-medicina, ou seja, torna-la mais relacional, mais recíproca, individualizada, receptiva e empática.
As 12 crenças do modelo humanístico
(1) A conexão mente-corpo
A visão humanizada reconhece a interconexão entre mente e corpo, entidades distintas, mas interligadas.
Conseqüentemente enfoca formas de cura que influam sobre as duas, alertando que não é possível tratar de sintomas físicos sem levar em consideração as componentes psicológicas que estão por trás do físico. As emoções de uma mulher grávida influem em seu trabalho de parto e muitos problemas nessa fase podem ser mais bem encaminhados através do suporte emocional e não das intervenções tecnológicas.
(2) O corpo como organismo
Apesar do corpo ser de certa forma como uma máquina, o fato é que, enquanto parte da vida biológica, ele é um organismo. Esta conclusão trás importantes conseqüências: mesmo as mais sofisticadas terapias não seriam efetivas sem os poderes de cura do próprio organismo. Dor e emoções são manifestações desse organismo, assim como os afetos e o vínculo necessário dos primeiros momentos de vida do bebê com sua mãe. Equivalente ao conceito de humanização neste campo é o de abordagem bio-psico-social.
(3) O paciente como sujeito de relação
Muitos profissionais humanizados não têm medo de estabelecer uma verdadeira relação humana com seus pacientes, demonstraram que o suporte afetivo proporcionado pelas famílias e amigos fazem cair o índice de mortes e elevam os índices de cura. Na década de 70, ativistas do parto natural, começaram a exigir a presença do pai ou de um acompanhante afetivamente significativo em sala parto, a não separação do bebê da mãe logo após o nascimento e a permanência de familiares e amigos durante o trabalho de parto se a parturiente assim o desejasse.
(4) Relação e cuidados entre o profissional e a paciente
O princípio que subentende o paradigma da humanização é o a conexão: aquela da paciente com os múltiplos aspectos de si mesma, de sua família, sociedade, saúde e com seu profissional de saúde. A idéia do processo de cura centrado na relação quer captar a importância das interações entre as pessoas como a base de toda terapêutica. No parto a maior evidência desse conceito vem das pesquisas sobre doulas. A doula é uma acompanhante de parto especialmente treinada para dar suporte à parturiente. Foi descoberto que a presença de uma doula reduz fortemente os problemas de asfixia fetal e de distócias de parto, diminui o trabalho de parto e reforça o vínculo mãe-bebê após o parto.
(5) Diagnose e cura de fora para dentro e de dentro para fora
A ênfase na comunicação entre o profissional e a paciente permite ao médico entrar em contato com informações profundas da paciente que, combinadas com seu saber médico, podem ajudar a encontrar soluções mais efetivas. Os humanizados, portanto, dizem que saber ouvir é tão importante quanto saber o que dizer, pois essa habilidade pode ser crucial para a elaboração de um diagnóstico correto. Muitos dos sintomas físicos manifestos mascaram problemáticas subjacentes. Ao invés de fazer uma série de rápidas perguntas, específicas e fechadas, os médicos encorajam a paciente a falar de si. Esta abordagem é chamada entrevista centrada na paciente; e é central no modelo humanizado que quer ser tecnicamente competente e humanamente empático.
(6) Equilíbrio entre as necessidades do indivíduo e as da instituição
A tecno-medicina é contrabalançada, pelos humanizados, por uma abordagem suave que pode variar da atitude mais superficial até o uso de métodos alternativos. É superficialmente humanizado decorar uma sala de parto altamente equipada; é mais humanizado providenciar espaços e condições flexíveis onde as mulheres em trabalho de parto possam se movimentar e estar à vontade. A maioria das instituições é estruturada a fim de implementar o modelo tecnocrático, desta forma a capacidade de mudança é muito limitada. Por isso, muitos profissionais humanizados se contentam com melhorias superficiais na rotina obstétrica.
(7) Informação, tomada de decisão e responsabilidade repartida entre o profissional e a paciente
Entre o empoderamento e a dependência se encontra o contexto no qual médico e paciente tomam decisões juntos. A maioria dos profissionais está treinada para o pensamento linear na tomada de decisão, mas muitos humanizados permitem a não linearidade que vem dos processos subjetivos os quais jogam um papel muito importante. É o estilo empático de pensamento. A ‘empatia’ se refere à habilidade de compreender a realidade de outra pessoa, mesmo quando não se teve a mesma experiência. Até em circunstâncias difíceis, o profissional se mantém aberto a diversas opções, enquanto que no modelo tecno-médico a cada situação corresponde um esquema de respostas e atitudes já pré-definido.
A idéia do consentimento informado estabelece que os pacientes têm o direito de entender sua diagnose e sua prognose, o tratamento que lhes é proposto, os riscos e benefícios. A discussão aberta das possibilidades de tratamento leva naturalmente à avaliação e à partilha dos valores, e os médicos são mais favoráveis ou, ao menos, mais neutrais na escolha de métodos alternativos de cura.
(8) Ciência e tecnologia contrabalançada pela humanização
Os médicos humanizados fazem da ciência sua referência e usam virtualmente os mesmos instrumentos e técnicasdos colegas da tecno-medicina. A diferença está no momento oportuno e na seleção. Os humanizados estão mais dispostos a esperar, são mais conservadores e mantêm a mente aberta à conexão mente-corpo. Foi desenvolvida toda uma nova geração de produtos tecnológicos que podem ser considerados humanizados. Para que tais intervenções sejam consideradas humanizadas, devem ser efetuadas sob pedido e desejo da paciente e seu uso deve ser fundamentado
nas evidências científicas. Idealmente, o atendimento obstétrico humanizado deve ser sempre embasado na ciência e não na tradição médica.
(9) Enfoque na prevenção
Muitos dos médicos humanizados são também defensores de iniciativas em saúde pública que fazem uso da
medicina baseada em evidências, frisando a prevenção e a inter-relação com o meio ambiente. As implicações desta abordagem no que diz respeito ao parto são enormes. Uma verdadeira prevenção de complicações no parto significa enfrentar as raízes dos problemas que levam à mortalidade materno-infantil. Mas, freqüentemente, as iniciativas públicas como a da Maternidade Segura permanecem fortemente influenciadas por uma perspectiva tecno-médica. Na tecno-medicina uma hemorragia ou anemia são consideradas as causas da morte materna, quando a realidade que promove esses problemas é a pobreza, a desnutrição, comida e água contaminadas, a condição prejudicial em que vivem as mulheres e o excesso de trabalho. O modelo humanizado tem em comum com a saúde pública a mesma orientação empática: ambas focam a prevenção, a promoção da saúde e a educação pública.
(10) A morte como uma possibilidade aceitável
No modelo tecnocrático, o nascimento e a morte foram tirados da comunidade, da família e das casas para serem isolados no ambiente hospitalar. Em sua mais elevada qualidade a abordagem humanizada valoriza em alto grau a individualidade e a liberdade de escolha dos pacientes. O processo de luto, o suporte à família, a dimensão espiritual e psicológica inerente à morte são amplamente valorizados e acompanhados pela equipe. É contemplada a família inteira do paciente e a possibilidade do trabalho de luto representar um processo de cura da própria família e da comunidade.
(11) Cuidados movidos pela empatia
Na cultura ocidental há dois conceitos que se desenvolvem em tensão recíproca e que estão presentes na medicina contemporânea: competência e cuidado. Enquanto a competência é associada às ciências naturais, o cuidado é um conceito que remete às humanas. O cuidar – take care – parece ser uma qualidade pessoal enquanto que a competência se refere à inteligência e suas habilidades. A abordagem humanizada tenta resolver exatamente esta contradição. Assim como no modelo holístico, naquele humanizado os sentimentos têm seu lugar e fazem parte do processo de cura. O eixo do ethos humanizado é a compaixão, definida como a capacidade de sentir e perceber as necessidades da outra pessoa, mesmo quando estão além de nossa experiência pessoal. Em função disso, os médicos humanizados permitem a si mesmo de ser humanos, deixando cair o medo de que outros possam pensar que eles são fracos e incompetentes se abrirem si mesmos seus próprios sentimentos e desenvolverem a habilidade de trabalhar os sentimentos de seus pacientes quando esses se sentem sobrecarregados.
(12) Mentalidade aberta frente outras modalidades
A maior parte dos humanizados não tem nenhuma intenção de aprender novas e alternativas técnicas de cura, entretanto permanecem abertos e até dão suporte ao paciente que desejam escolher métodos alternativos. Ser simplesmente mais simpático, cuidadoso e disposto ao toque é o que para eles representa o modelo humanizado. Muitos não irão ultrapassar a barreira criada por arraigados conceitos. Poucos darão o salto para além da compaixão, enveredando pelo caminho que utiliza os poderes de cura daquela coisa misteriosa que chamamos de energia.
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